Os dias da rádio
As quotas são um mal necessário que impõe obrigatoriedade onde devia haver naturalidade. Às vezes, é preciso forçar os acontecimentos para impor uma ordem natural e lógica. É desta forma que se justificam as quotas de música portuguesa na rádio.
Há dois anos, a então ministra da Cultura, Graça Fonseca, anunciou que, no âmbito das medidas de resposta à pandemia da covid-19, a quota seria reforçada em 5%. O objetivo era “incrementar a divulgação de música portuguesa” e “a sua valorização em benefício dos autores, artistas e produtores”. Esta medida ocorreu também num contexto de produção intensa e diversificada, como nunca antes. Podemos discutir a subjectividade, mas é indiscutível que a música portuguesa, como um todo, é hoje uma fotografia aproximada do país em toda a sua extensão social, cultural, política e até geográfica.. E provavelmente, é uma das mais ricas em criatividade da Europa. O que lhe falta? Mais e maiores canais de exportação.
Os consumos de música portuguesa cresceram bastante na última década, criando até um sentimento de orgulho e pertença que já não se via desde o início dos anos 90 quando acontecimentos como os estádios dos GNR ou o concerto Portugal ao Vivo faziam manchetes e tinham honras de destaque televisivo com directos, reportagens e, por vezes, transmissōes. Não é uma opinião, são, por exemplo, os números de streaming que o dizem.
Porém, a quota mínima de música portuguesa na programação das rádios baixou de 30% para 25%, voltando à percentagem que vigorou desde 2006, com exceção do ano de 2021. Uma boa notícia para alguns programadores duros de ouvido, péssima para criadores, agentes e público.
Quando o gabinete do Ministro da Cultura defende que a decisão de voltar a diminuir a quota se prende com o facto de, ultrapassada a emergência pandémica, os artistas portugueses já não estarem privados de dar concertos e, portanto, a “substancial perda de receitas” que sofreram deixou de se verificar, revela ignorância ao não compreender a interdependência do sector.
Antes de ser o aforro insinuado pelo MC, a rádio funciona como meio difusor. E com uma resistência surpreendente para com a multiplicação de plataformas e acessos. Sim, a rádio ainda gera influência. Para público generalista (Rádio Comercial/RFM), especializado (Antena 3, Radar, SBSR, Oxigénio) ou juvenil (Mega Hits/Cidade FM). E a capacidade de fazer a diferença está nos Quatro e Meia, n’A Garota Não ou nos Wet Bed Gang. Não está em Ed Sheeran ou nos Coldplay. Que receitas são essas? Como é dividido o bolo? Nisso, a rádio não é muito diferente do streaming. Fatias douradas para uns, migalhas para quase todos.
Mais chocante é a posição de Luís Mendonça, presidente da Associação Portuguesa de Radiodifusão, ao defender que “não há produção suficiente para assegurar esses valores (de 30% de rádio)”. Representar o sector e ser mouco teria graça para um sketch. Neste contexto, revela desconhecimento grosseiro e ofensivo para com os criadores.
É por intervenções deste nível que a quota precisava de ser mantida e defendida.