Concertos com história # 1 – Daft Punk no Sudoeste

 

Daft Punk no Sudoeste. Como assim Daft Punk no Sudoeste!? Isso aconteceu mesmo!? Dezassete anos de separação entre o facto e a perplexidade não ajudam na idoneidade da resposta mas sim, foi real. Na madrugada de 5 para 6 de agosto, por volta das duas da manhã, a torre de leds ergueu-se como uma nave acabada de aterrar do espaço e a poeira levantou sem reclamaçōes no livro do festival.

 

Apesar da costela portuguesa de Guy-Manuel de Homem-Christo, a hipótese parece tão remota que, ao contrário de outras visitas históricas a Portugal, só quem lá esteve pode confirmar a veracidade dos acontecimentos. Ainda por cima, as 30 mil pessoas estimadas pela organização de uma Música no Coração a meses do divórcio entre Luís Montez e Álvaro Covōes são irrisórias se comparadas com os números actuais de um festival médio-alto, e principalmente com o efeito multiplicador dos franceses. Estes já eram os Daft Punk de Around The World e One More Time, dos álbuns Homework (1997), Discovery (2001) e do mal-amado Human After All (2005) mas ainda não eram os Daft Punk de Get Lucky ou de Stronger (de Kanye West) – o factor comunicação materializado na explosão das redes sociais e o mistério cada vez mais denso em torno de Homem-Christo e Thomas Bangalter fez dos Daft Punk um mito de percepção sobrenatural. Para dois robôs, confere.

 

Nesse mundo, já com MySpace mas ainda sem Facebook, Twitter e muito menos Instagram, a velocidade de transmissão era mais lenta, mas o BPM dos Daft Punk não abrandava. Se encontrarem por aí testemunhas oculares do abalo sentido, poucas serão as memórias. E porquê? Pelo efeito de transcendência, êxtase e libertação. Uma onda física maior do que a multidão, mais rápida do que a música e mais poderosa do que o som saía da instalação sonora e abalroava os ossos como um tsunami. Chamar-lhe concerto seria redutor, lembrá-lo como um espectáculo é pecar por defeito. A última digressão dos Daft Punk foi uma experiência superior de pujança rítmica e arrebatamento visual, apoiada numa produção conceptual multimédia, em que música e imagem eram um todo – o álbum ao vivo de 2007, gravado em Paris, é muito semelhante. Uma pesquisa rápida conduz à memória visual desse último contacto dos Daft Punk com um palco.

 

O embate entre o poder do rock’n’roll e o hedonismo digital foi constante. Elaborado como um DJ set, ninguém se importou se Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter estavam de facto a tocar. Essa pergunta de guitarristas e bateristas ficou no bolso, Muito mais do que executantes, ali o papel era de manipulação sonora. E de presença. Discreta, para não desfazer o mistério, mas garantindo veracidade e credibilidade a uma encenação muito maior do que a soma de duas personalidades.

 

Com a ajuda de Alive 2007 como cábula, as passagens memoráveis sucedem-se, da introdutória Robot Rock com Oh Yeah a Touch it com Technologic, Around The World com Harder, Better, Faster, Stronger ou One More Time com Aerodynamic. À medida que os cerca de 90 minutos avançavam, a sensação electrizante crescia e transbordava para além do corpo. E sem surpresas, fez-se histórias.