Concertos com história #4 – 50 Cent no Pavilhão do Atlântico

 

Isso é verdade? Não pode ser. Só que pode. O primeiro grande concerto de hip-hop em Portugal foi há 18 anos. Escrito assim, parece bastante tempo mas não. Aconteceu apenas em 2005, na noite de 2 de outubro. E como se pode imaginar, não foi apenas um concerto, foi um acontecimento. Preencheu manchetes, foi notícia nos telejornais, causou apreensão generalizada e receio nos pais, principalmente das filhas.

 

Eram outros tempos. O hip-hop estava na era pop e, depois do titã Eminem, 50 Cent era o gigante do momento com o segundo álbum The Massacre a render platinas na era do MP3 e do CDr; singles como Candy Shop e Just a Lil Bit batiam nos carros, na rádio e no clube (in da club). Nos anos anteriores, o hip-hop tinha invadido a MTV, com o efeito transversal massificador que o canal ainda gerava, quer com os protegidos de Dr. Dre (Eminem, 50 Cent), quer graças às máquinas de produção dos Neptunes e de Timbaland. Figuras como Missy Elliott, Jay-Z, Outkast, Puff Daddy, Nelly, Busta Rhymes ou DMX tinham nome, rosto e estatuto. O que o hip-hop ainda não tinha conquistado era a maturidade na percepção colectiva.

 

Havia medo no ar, amplificado, é verdade, pelo sexismo, misoginia e criminalidade exibida e celebrada na cultura visual de rappers como 50 Cent. Mas seria assim tão diferente do exibido pelos Limp Bizkit, um fenómeno adolescente ligeiramente anterior, como expōe de forma clara o documentário sobre o Woodstock 99?

 

A reportagem do Público, assinada por Vítor Belanciano, não permite falhas de memória. “É sábado, são quase 21h, e carros munidos de potentes aparelhagens passam junto ao Centro Comercial Vasco da Gama, Parque das Nações, em Lisboa, difundindo uma música de sons graves. Nas imediações do Pavilhão Atlântico há muitos polícias, como é raro ver em espectáculos em Portugal. As filas para entrar prolongam-se até se perderem de vista. Para ver 50 Cent, a primeira estrela planetária do rap americano a visitar Portugal, há gente de todas as idades e camadas sociais. Há pais com filhos ainda crianças. Grupos de adolescentes de raparigas e rapazes”.

 

E mais: “Há negros e brancos. Talvez mais brancos. Quase ausente parece ter estado a comunidade hip-hop portuguesa mais militante, provando que, apesar da tentação de se falar do hip-hop como um todo possuído por uma lógica coerente, possui contradições internas. Nem toda a gente se revê na música de 50 Cent, nem no imaginário que expõe. Durante a semana circularam rumores de que a ocasião poderia servir para desencadear desacatos. Mas a única violência foi estar numa fila que parecia não ter fim (…) Apesar das falhas, as consciências podem estar tranquilas: ninguém se queixou e a atmosfera foi exemplar”.

 

Na primeira parte, Boss AC, também ele no auge da popularidade graças ao single Hip Hop (Sou Eu e És Tu), premonitório de uma democratização musical, social e inevitavelmente racial do hip-hop, apenas conquistada alguns anos depois na geração da Internet. Maior que AC na época, só os Da Weasel – uma banda rock com rimas, mais do que um colectivo rap com guitarras. A massa de som indefinida perdia-se no histerismo do público, sobretudo o feminino das primeiras filas. Ainda assim, canções como essa ou Baza baza, foram cantadas em coro. “Este é um dia para ficar na história”, lançou, consciente da importância daquele momento, para quem tenta impor a sua música há mais de uma década”, recorda a reportagem do Público.

 

Boss AC devia ter subido ao palco às 21h00 mas só começou às 22h00. 50 Cent tinha entrada prevista para as 22h00 mas só às 23h30 chegou, para gáudio de cerca de 18 mil pessoas. Como se esperava, trouxe a comitiva G-Unit que, em grande parte, funcionou como a banda de suporte inexistente em palco. Um DJ, os tradicionais fogos e muitas palavras de incentivo da e para a crew mitigaram uma certa pobreza musical. Que em disco, a produção enriquece com instrumentais portentosos como o de Candy Shop ou o de Outta Control. Não faltaram esses singles, nem os do inaugural Get Rich Or Die Tryin’. Foi uma noite histórica, mas não por isso. “Esteve longe de ser um concerto memorável”, rematava a reportagem, “mas foi uma noite de consagração para o hip-hop em Portugal”.