Contra-cultura do cancelamento?

 

A notícia caiu com estrondo. Win Butler, vocalista, escritor de cançōes e rosto dos Arcade Fire, fora acusado de sexo não consentido numa investigação conduzida pela Pitchfork. À revista digital, o longilíneo canadiano não negou ter mantido relaçōes fora do casamento com a companheira de banda Régine Chassagne mas contrariou a parte mais sensível da acusação das quatro mulheres, afirmando que todos os actos foram consensuais – as denúncias foram todas no mesmo sentido, Win Butler reconheceu as traiçōes com arrependimento – “estraguei tudo e, embora não sirva de desculpa, continuarei a olhar para frente para remediar o que pode ser remediado” -, e foi suportado pela mulher. “Ele perdeu-se, mas encontrou o caminho de volta”, declarou Régine Chassagne.

A bomba rebentou dias antes do início da digressão dos Arcade Fire em Dublin, que passará pelo Campo Pequeno nos dias 22 e 23 de setembro. Algumas rádios canadianas decidiram retirar a banda das escolhas “até o caso ser esclarecido”. Houve também quem pedisse a devolução dos bilhetes, mas não só a digressão se manteve firme e hirta à polémica, como a banda foi “ovacionada” na Irlanda a julgar por relatos da imprensa e vídeos publicados nas redes sociais. Para já, as reacçōes parecem ser tímidas e benevolentes, por comparação com casos anteriores que têm vindo a lume desde o escândalo #MeToo.

Até prova em contrário, Win Butler é inocente. Reconheceu parte da acusação. E ao contrário de “cancelados” anteriores como Marilyn Manson, autor de cançōes explícitas como “I Want To Kill You Like They Do in The Movies”, não só a música dos Arcade Fire não incita a nenhum destes valores, como a conduta quer da banda, quer do vocalista, é exemplar. Aí reside uma parte do problema: no choque frontal entre virtudes públicas e vícios privados. Metade do interesse deste caso está no contraste face à percepção pública dos AF. A outra no facto de existir um conjunto de denúncias todas no mesmo sentido e contradições com a defesa de Win Butler.

Teremos de esperar pela evolução do  mas este pode ser muito bem um caso de referência na cultura do cancelamento. Desde o escândalo #MeToo, tem-se assistido a uma banalização destes casos, a um julgamento indiscriminado que toma a parte pelo todo, quando cada caso tem a sua especificidade, e só há um julgamento legítimo: o da justiça. Este comportamento tem levado a um contágio cada vez maior do espaço público pelo privado. Depois de Leaving Neverland, é muito difícil não acreditar que Michael Jackson cometeu actos de pedofilia mas deve a sua obra – o thriller mais apaixonante da história da pop – ser revista e apagada por isso?

No caso dos Arcade Fire, o carinho, a adoração e a reputação parecem servir de atenuante. É verdade que se trata de uma das bandas com maior poder de fogo na história do rock deste século e que os álbuns Funeral (2005) e Reflektor (2013) estão entre os mais brilhantes dos últimos vinte anos. Neste, como em todos os outros casos de cancelamento, de Woody Allen a Michael Jackson ou Ryan Adams, do que se trata é de separar as águas entre obra e autor, assim como de interpretar as infiltrações da vida privada na esfera pública. Se Win Butler e, por arrasto, os Arcade Fire forem ilibados pela opinião pública, tal deve-se ao reconhecimento da sua obra e ao facto de muito do seu público mais devoto ser melómano e esclarecido. Se for este o desfecho, nunca poderá substituir os tribunais, mas os Arcade Fire e o seu vocalista estarão a inaugurar a contra-cultura do cancelamento.